CONVIVÊNCIA CRÍTICA: NAURO MACHADO, POETA DE SEMPRE!
Hildeberto Barbosa Filho [1]
Os anos 50 e 60 do século passado foram marcados pelas experiências de vanguarda em torno das questões poéticas. A onda experimentalista em face dos artefatos da linguagem deflagrou, em certo sentido, aquilo que os corifeus da poesia concreta denominaram de “a crise do verso”. Não foram poucos os poetas que embarcaram nessa viagem de pesquisas técnicas, formais, estilísticas em busca de novos caminhos para a consecução do discurso poético. É claro que a poesia brasileira acenou, em certos aspectos, para estratégias de composição além das camadas verbais, apreendendo – não se pode negar – lições de economia expressiva e de diálogo com outras linguagens que fertilizaram, em muito, o terreno da produção literária e estética.
Não obstante, cabe lembrar, aqui, que alguns poetas (e também não foram poucos) mantiveram-se fiéis às exigências tradicionais do verso e da imagem, explorando silenciosamente os seus limites, suas possibilidades, seus espaços de permanência e renovação, sobretudo compactuando com os paradigmas das altas vozes da lírica ocidental.
Nauro Machado, maranhense de São Luís, é um desses poetas. Estreando em 1958, com Campo sem base, tem demonstrado, ao longo do tempo, uma verve vertiginosa em termos de produção, haja vista o enorme número de títulos publicados, e uma dedicação incomparável aos sortilégios da poesia enquanto epicentro existencial de sua trajetória biográfica e artística.
Se formalmente sua dicção poética trilha três modelos estéticos – o poema de versos longos, a prática do soneto, em ampla e vasta variação, e o poema de versos curtos, ou seja, sua experiência minimalista -, tematicamente Nauro é um poeta só, de uma só matriz, de uma só perplexidade, calcada, a seu turno, numa veemente, continua e obsessiva indagação sobre a natureza do ser, do ser e seus derivados. A ele e à sua obra poética caberia bem, como epígrafe, os versos de Drummond: “Como ficou chato ser moderno / agora eu quero ser eterno”.
Pois bem, é esse sentido de eternidade que envolve as indagações existenciais permanentes, à semelhança dos metafísicos ingleses, e uma pauta discursiva de genuína identidade estilística que fazem de Nauro um poeta único, original, inimitável, autor de um longo e torturado poema, ou melhor, de um arquipoema que se desdobra em instâncias antagônicas e complementares por onde transitam personagens e motivos, situações e conflitos, desejos e afetos que nos revelam a ambivalência humana: o animal que somos e nossa ânsia de transcendência.
Como um Baudelaire, como um Augusto dos Anjos, como um João Cabral de Melo Neto, Nauro Machado se reconhece, no plano do vocabulário escolhido e da sintaxe versificatória, à leitura de qualquer poema. À semelhança de certos pintores, que não careceriam de assinar seus quadros para podermos identificá-los (um Goya, um Van Gogh, por exemplo), Nauro também não precisa assinar seus poemas para ser reconhecido. Seu estilo é tão próprio, tão singular, tão característico e tão coerente com os assuntos, temas e motivações que aborda em seus poemas, que o que lemos nele só podemos ler nele, como se fora uma marca e um selo irrepetíveis, uma espécie de idiossincrasia surpreendente, ou, como diria Ezra Pound, uma novidade que permanece sempre novidade.
Funil do ser (canções mínimas), publicado em 1995 pela Editora da Universidade Federal do Maranhão, como qualquer outra obra do autor, evidencia bem o sentido de minhas palavras.
Se a vertente técnico-literária privilegiada é a do verso curto, substantivo, estreito e, de certo modo, de duração mínima, numa alusão à finitude temporal do poeta enquanto ser, e eu diria, com Heidegger, “um ser para a morte”, a metáfora-síntese é a do título, “funil do ser”, remetendo para a ideia do estreitamente da existência, da vida que vai se tornando menos no pouco tempo que lhe resta, afunilando, assim, suas naturais possibilidades.
Deste eixo nuclear se irradiam as tópicas com as quais o eu lírico, já transfundido pela cenografia da linguagem, vai dialogar, sempre envolto num clima de tensão reflexiva, com as inquietações que mobilizam seu ser e estar no mundo. Deus, a morte, a condição biológica, a condição metafísica, o sexo, a doença, a velhice, a palavra, a poesia, entre tantas categorias do bicho humano, aparecem em sua essencialidade, como habitantes desse “funil” que cada vez mais se estreita (e se estreita mesmo na linguagem) como uma réplica do inferno dantesco, em sua trágica escalada descendente.
Em cada poema do livro é possível verificar a circulação de tais ideias, de tais sentimentos e emoções, à parte a diversidade de escolha temática. Em “Viagem” (p. 25), por exemplo, observem-se as correlações semânticas e metafóricas entre “navio” e “vida”: “Nenhum navio / (no oceano embora) / atinge o chão / da imensidade: // assim a vida / que se imagina. / (Ela é mais funda / do que supomos)”. Em “Caranguejeira” (p. 33), o eu lírico ainda é mais explícito, sobretudo nas duas últimas estrofes. Vejamos: “Todo dia me acordo / cada vez mais cadáver / para dentro no escuro. // Ser Deus na eternidade / ou quando o gozo geme / ainda antes de tremer / como dentro de um túmulo”.
A propósito, esse sentir e olhar as coisas por dentro, esse percurso pelo interior do corpo e da alma, esse estranho metabolismo do estreitamento e do afunilamento do ser, ou, em outra clave, talvez mais pertinente e mais aguda, a asfixia dos elementos vitais, como que balizam a cadência e a imagética de cada poema, sobretudo se pensarmos em vocábulos, como pedra, túmulo, cova, sombra, noite, trevas, morte, e, num registro mais biológico, tão típico da voz naurina, garganta, boca, útero, entranhas, vagina, ossos, hímen, ventre, entre tantos outros.
Chamo a atenção ainda para o caráter funcional dos títulos dos poemas que, em sua força catafórica e indicativa, sinalizam diretamente para a ideia central, imprimindo-lhes unidade de concepção, e para a dialética, sempre recorrente na poesia do autor de Zoologia da alma, entre o material e o espiritual, entre o físico e o metafísico, o corpóreo e o anímico, enfim, entre o biológico e o mental. Estes elementos, e outras nuances não ventiladas aqui, me dão a convicção de que Nauro Machado é um poeta de sempre.
[1] – Hildeberto Barbosa Filho é Mestre em Literatura Brasileira, Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais e Licenciado em Letras Clássicas e Vernáculas pela (UFPB); Além de professor da Universidade Federal da Paraíba é crítico literário, escritor, poeta e jornalista.
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Resenha publicada em 06 de outubro de 2013 no caderno Alternativo do jornal O Estado do Maranhão.